Direito, pra que te quero, sem jurisdiquês: Natureza, um sujeito de direitos

Carine Bergmann 7 de março de 2023
 Direito, pra que te quero, sem jurisdiquês: Natureza, um sujeito de direitos

Por Mario Mario Benevides, advogado – Signatário do Movimento Nacional ODS SC – mariocsbenevides@gmail.com.

Não é nenhuma novidade que o Brasil não faz fronteira com o Equador, e de certo há muitas diferenças entre o Gigante pela Própria Natureza e o país verdadeiramente berço do Chapéu Panamá – no tempo ainda dos incas[i], cujo idioma era o quéchua, até hoje falado por povos originários que vivem no Equador. Em quéchua, Mãe Terra, ou Mãe Natureza, chama-se Pacha Mama.

A Constituição do Equador é 20 anos mais jovem do que a também jovem Constituição da República Federativa do Brasil, que pode e deve ser rejuvenescida por meio de emendas – mas que em nada se pareçam com remendos, como algumas das recentes. Entretanto, nem sempre uma emenda é necessária para que a nossa popular e ao mesmo tempo desconhecida Constituição Federal se rejuvenesça, como se pode perceber no caso a seguir.

Já no preâmbulo, a Constituição do Equador de 2008 celebra a natureza, “a pacha mama, de quem somos parte e que é vital para a nossa existência”. Pode parecer elementar que a sociedade e qualquer pessoa façam parte da Natureza em qualquer lugar do mundo, e que ela seja vital para a nossa existência; entretanto, desde a Revolução Industrial, no século XIX, a sociedade mais tem explorado a Natureza como um ente à parte e de recursos infinitos do que propriamente fazer parte dela. O alarme de que isso é um grave erro tem sido dado com frequência, principalmente por causa do agravamento e da aceleração pela ação humana da mudança climática. O mais recente trágico episódio foi o ocorrido durante o carnaval no litoral-norte do estado de São Paulo.

O art. 10 da Constituição do Equador (traduzido para o português) determina que “A natureza será sujeito dos direitos reconhecidos pela Constituição”; e o Capítulo Sétimo é integralmente dedicado aos Direitos da Natureza.

O art. 71, aqui reproduzido em parte, em português, determina:

Art. 71.- A natureza ou pacha mama, onde se reproduz e se realiza a vida, tem direito ao pleno respeito por sua existência e à manutenção e regeneração de seus ciclos vitais, estrutura, funções e processos evolutivos.

Qualquer pessoa, comunidade, povo ou nacionalidade pode exigir o cumprimento do poder público com os direitos da natureza. […][ii]

Pois esse foi um dos embasamentos da Ação Civil Pública (ACP)[iii] proposta à Justiça Federal de Florianópolis por instituições locais[iv], com assessoria jurídica da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)[v] e assistência do Ministério Público Federal, à Justiça Federal de Florianópolis, contra organismos do Estado de Santa Catarina e do Município de Florianópolis[vi],[vii].

Datada de 19 de maio de 2021, a ACP tinha como principal demanda “a adoção de medidas de natureza estrutural […], visando à efetiva implementação de um sistema de governança socioecológica de gestão, proteção, controle e fiscalização dos impactos presentes e futuros vinculados à integridade ecológica da Lagoa da Conceição, localizada no município de Florianópolis/SC”.

Adiantando-se que a ACP, que menciona a Constituição do Equador, resultou em obrigações da outra parte, o trecho a seguir transcrito demonstra que nem sempre emendas constitucionais são necessárias para que se respeite a Constituição Federal:

O paradigma jurídico-constitucional vigente consagra o direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225, caput), ao mesmo tempo em que determina, para garantir a sua efetividade, obrigações ao Poder Público de preservação e restauração dos processos ecológicos essenciais (art. 225, §1º, inciso I) e de proteção da fauna e da flora (art. 225, §1º, inciso VII) […] considerando que não se trata de determinações restritas aos interesses humanos, não há óbice para a inclusão da própria Natureza e, no caso concreto, da Lagoa da Conceição, no círculo de proteção constitucional […].

Por ordem judicial em decorrência da ACP, foi criada a Câmara Judicial de Proteção da Lagoa da Conceição[viii]; e a Fundação Municipal do Meio Ambiente (Floram) formou um Grupo Técnico (GT) “com objetivo geral de acompanhar a gestão dos recursos hídricos e qualidade da água nas Bacias Hidrográficas da Lagoa do Peri e da Lagoa da Conceição”. Além disso, a Floram divulgou estudos e pareceres técnicos “sobre o rompimento da lagoa de evapoinfiltração (LEI) e seus efeitos para o meio ambiente e para a saúde humana, bem como a situação de contratação de terceiros (consultores) e os resultados do monitoramento nas águas da Lagoa da Conceição”; e informa que “O GT da Floram vem trabalhando intensivamente desde o acidente com a ruptura do talude da LEI (25/01/2021)”, sendo que “As atividades incluem, dentre outras, cobrança de ações emergenciais da Casan [Companhia Catarinense de Águas e Saneamento]”[ix].

Um outro ponto de contato entre a nossa Constituição e a do Equador está no que expressa o art. 72 da constituição equatoriana:

A natureza tem direito à restauração. Essa restauração será independente da obrigação do Estado e das pessoas naturais ou jurídicas de indenizar indivíduos e grupos que dependem dos sistemas naturais afetados.

O mesmo vale para o Brasil: por exemplo, pessoa natural ou jurídica que prejudicar por qualquer ato a qualidade da água da Lagoa da Conceição estará sujeita a ter que reparar os danos causados a terceiros, independentemente do que possa ser reclamado em nome da própria lagoa como sujeito de direitos.

Além de se perceberem parte da pacha mama, em sua Constituição os equatorianos reconhecem suas “raízes milenárias, forjadas por mulheres e homens de distintos povos”. Que implicações isso traz? Que relação guarda com a nossa Constituição e a de outros países da América?

Fica para outra oportunidade.

Obrigado pela leitura.


[i] Disponível em: https://www.chapeupanama.com.br/historia/. Acesso em: 6 mar. 2023.

[ii] Disponível em: https://www.stf.jus.br/repositorio/cms/portalStfInternacional/newsletterPortalInternacionalFoco/anexo/ConstituicaodoEquador.pdf. Acesso em: 6 mar. 2023.

[iii] Processo nª 5004793-41.2021.4.04.7200. Signatários da ACP: Prof. Dr. José Rubens Morato Leite – Coordenador do GPDA/UFSC; Profa. Dra. Letícia Albuquerque – Coordenadora do OJE/UFSC; Profa. Dra. Melissa Ely Melo

Coordenadora de Pesquisa do CCJ/UFSC e Pesquisadora do GPDA/UFSC; Isabel Pinheiro Paula Couto – Articuladora Cultural e Interinstitucional do Projeto e Pesquisadora do GPDA/UFSC; advogados Luiz Fernando R. Borges, Larissa Verri Boratti, Humberto F. F. C. M. Filpi e Marcelo Pretto Mosmann. Disponível em: http://files.harmonywithnatureun.org/uploads/upload1119.pdf. Acesso em: 6 mar. 2023.

[iv] As instituições mencionadas são: ONG Costa Legal, Associação Florianopolitana das Entidades Comunitárias (Ufeco) e Associação Pachamama.

[v] A assessoria da UFSC foi por meio do Grupo de Pesquisa Direito Ambiental e Ecologia Política na Sociedade de Risco (GPDA) e do Grupo de Pesquisa Observatório de Justiça Ecológica (OJE)

[vi] Os organismos citados são: Município de Florianópolis, Fundação Municipal do Meio Ambiente (Floram), Estado de Santa Catarina, Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA/SC), Companhia Catarinense de Águas e Saneamento (Casan) e Agência de Regulação de Serviços Públicos de Santa Catarina (Aresc).

[vii] Disponível em: http://files.harmonywithnatureun.org/uploads/upload1119.pdf. Acesso em: 6 mar. 2023.

[viii] Disponível em: https://mpsc.mp.br/noticias/justica-cria-camara-judicial-de-protecao-da-lagoa-da-conceicao-e-atende-pedido-do-mpsc-para-atuar-como-assistente-em-acao-ajuizada-por-entidades-civis. Acesso em: 6 mar. 2023.

[ix] Disponível em: http://www.pmf.sc.gov.br/entidades/floram/index.php?cms=lagoa+da+conceicao&menu=0. Acesso em: 6 mar. 2023.