Santa Catarina tem protagonizado um verdadeiro “passar da boiada” em legislações federais, estaduais e municipais
São vários os movimentos de legisladores catarinenses no sentido de diminuir a proteção ambiental. A diminuição de Unidades de Conservação, como o Parque Nacional de São Joaquim, é defendida pelo Senador Esperidião Amin (PP-SC), o mesmo interessado em aprovar legislação que retira a proteção dos Campos de Altitude.
Por sua vez, a lei federal 14.285/21 alterou o Código Florestal em Áreas de Preservação Permanente (APPs) em áreas urbanas de todo o país. A proposta foi de outro parlamentar catarinense, Rogério Peninha (MDB-SC). A mudança na legislação dá aos municípios o poder de definir a metragem da faixa de proteção às margens de cursos d’água nas cidades, em detrimento de medidas mínimas definidas pelo código em âmbito federal.
Peninha contou com o apoio de conterrâneos para aprovar a lei. A autora do pedido de tramitação do projeto de lei em regime de urgência foi a deputada Angela Amin (PP-SC). Já o relator foi o deputado Darci de Matos (PSD-SC).
A pressão de setores voltados à especulação imobiliária é recorrente no litoral catarinense. Mas, nos últimos anos, os empreendimentos imobiliários ostensivos subiram a Serra.
Urubici na mesma régua de Brasília
A prefeita de Urubici, Mariza Costa (PP), fez propostas de lei para o Plano Diretor Municipal, seguindo a linha de estimular o desmatamento em áreas que devem ser protegidas, especialmente na zona rural do município.
O entendimento da legislação federal e dos tribunais superiores é pela proibição de loteamentos em zona rural para a formação de condomínios e chácaras para lazer, exceto de áreas consideradas urbanas ou pertencentes à zona de turismo. Isso para evitar a proliferação de minifúndios que não cumprem a função socioambiental da propriedade rural.
Quatro organizações brasileiras apresentaram uma análise inicial sobre a proposta de lei complementar. São elas o Observatório de Justiça e Conservação (OJC), a Rede Nacional Pró-Unidades de Conservação, a Associação de Preservação do Meio Ambiente e da Vida (Apremavi) e a Rede de ONGs da Mata Atlântica (RMA).
Segundo a análise, o texto deixa de fazer esclarecimentos importantes e entra em conflito com a legislação ambiental vigente. As propostas que foram divulgadas para o Uso e Ocupação do Solo e para o Parcelamento do Solo para Fins Urbanos, em abril de 2022, contudo, seguem nessa mesma linha, uma vez que possibilitam um uso desordenado da zona rural de Urubici, sem o devido planejamento territorial.
Os textos ignoram a regulamentação da Lei da Mata Atlântica (11.428/06), válida em todo território nacional onde ocorre o bioma, como é o caso de Santa Catarina. Para empreendimentos maiores que 50 hectares, o IBAMA precisa autorizar o corte de vegetação. Essa mesma lei estabelece uma série de restrições, permitindo o corte, a supressão ou a exploração da Mata Atlântica apenas para projetos de utilidade pública ou de interesse social, pesquisa científica e práticas preservacionistas.
Também é vedada a autorização para parcelamento de solo ou empreendimento que puser em risco a sobrevivência de espécies da flora ou fauna ameaçadas de extinção, como é o caso da araucária e do xaxim, presentes em Urubici.
Ainda, de acordo com o Conselho Nacional de Meio Ambiente, empreendimentos turísticos e atividades de parcelamento do solo só são permitidos com licenciamento ambiental.
A ameaça do mercado imobiliário
No caso de Urubici, o módulo fiscal tem 20 hectares, o equivalente a 200 mil metros quadrados, conforme normativa do INCRA. Decisões no Superior Tribunal de Justiça e no Tribunal de Justiça de Santa Catarina pesam contra o parcelamento de imóveis rurais em lotes pequenos e para outras finalidades que não as rurais. Segundo as decisões, diminuir os lotes interrompe o planejamento municipal atual e futuro, além de dar margem para violações de legislação socioambiental.
É o que uma imobiliária está anunciando em Urubici: a venda de lotes com 10% do módulo fiscal para o município. “Seu cantinho próximo à natureza” é o slogan da campanha da Paraíso Urubici, página na internet que anuncia áreas de dois hectares ao preço de 150 mil reais.
O anúncio oferta opções de compra em três loteamentos, nas regiões do Campo dos Padres, Estrada das Jararacas e Rio dos Bugres. A primeira região, o Campo dos Padres, possui um projeto de criação de Parque Nacional submetido ao governo federal em 2006, mas arquivado depois de anos sob análise.
A Promotoria de Justiça da Comarca de Urubici está acompanhando o caso de venda dos lotes, além do andamento da revisão do plano diretor do município.
O engenheiro florestal e ex-professor da UFPR e da Colorado State University, Miguel Milano, escolheu viver na Serra Catarinense exatamente pelas belezas naturais. “A falta de conhecimento se combina com a ganância. A ocupação desordenada e às pressas, motivada pelo lucro fácil imediato, compromete de maneira irreversível as bases naturais e as belezas de toda a Serra Catarinense”, afirma.
Milano, que também é empresário e presidente do COMTUR de Urupema, município vizinho a Urubici, diz que a especulação imobiliária na região tem se intensificado muito. “A região precisa respeitar suas bases naturais e herança histórico-cultural, o que pressupõe a construção de regras adequadas de controle do uso e ocupação do solo. Só assim será possível um desenvolvimento socioeconômico sustentável e inclusivo”, conclui.
Conselheira da Apremavi, Miriam Prochnow lembra que imóveis rurais formam uma importante proteção natural no entorno de unidades de conservação. “Quanto mais as áreas são fragmentadas e viram plantações, chácaras e casas, mais infraestrutura vai chegar lá. Isso substitui os ambientes naturais, o que significa menos habitat para espécies de fauna e flora”, afirma Prochnow. “O adensamento populacional põe as unidades de conservação em perigo”.
A lei complementar foi proposta no ano passado e arquivada na Câmara Municipal de Urubici na virada do ano legislativo, podendo ser reapresentada pelo presidente da casa. A vereadora Eolanda Terezinha da Rosa Costa (PSD) pediu vistas da proposta de lei complementar no ano passado.
Segundo a vereadora, há partes no texto que podem entrar em conflito com o plano diretor do município, que passa por revisão e não foi atualizado dentro do prazo máximo. Os planos diretores têm validade de 10 anos e o de Urubici venceu em 2019. “Se o projeto for apresentado antes da aprovação do novo plano, vou pedir emendas”, adianta Costa.
Apesar de leis municipais não se sobreporem às federais, propostas como esta fragilizam a legislação ambiental, afirma o coordenador geral da RMA e professor da UFSC, João de Deus Medeiros.
“Temos um grande contingente de lideranças políticas, incluindo parte expressiva dos prefeitos de Santa Catarina, que entendem que a lei da Mata Atlântica compromete o desenvolvimento do estado e dos municípios, o que não é verdade”, pontua.
De acordo com o coordenador da RMA, tentativas de alteração da legislação municipal são uma estratégia de desmonte das regras ambientais e recorrentes no estado.
“Em tese, a lei não surtiria efeito. Mas na prática, muita gente vai aproveitar este escudo e teremos o velho problema do Brasil que é a judicialização dos casos. Enquanto as ações correm na Justiça, muitas áreas vão sendo destruídas”, afirma Medeiros.
Serra Catarinense: bela, visada e ameaçada
Os municípios de São Joaquim, Urubici, Urupema, Bom Retiro, Bom Jardim da Serra, Painel e Rio Rufino se destacam pela elevada altitude, beleza cênica única e o que restou da Floresta com Araucárias que cobria as regiões mais altas de quase todo o sul do país.
Com uma altitude que pode chegar aos 1.822 metros no Morro da Igreja no Parque Nacional de São Joaquim, Urubici possui ecossistemas ricos do bioma Mata Atlântica, como as Florestas com Araucárias e os Campos de Altitude, ambos ameaçados de extinção. Estas belezas naturais e as delícias do inverno, como a neve, são procuradas por turistas de todas as partes que chegam a mais do que dobrar a população de 11,3 mil habitantes da cidade.
Em 2018, mais de 150 mil pessoas visitaram o município. Estima-se que, com o aumento do turismo interno durante a pandemia, esse número bateu todos os recordes a ponto de se tornar um problema.
São inúmeros os serviços ambientais prestados pela flora e fauna que ainda cobre a região da Serra Catarinense. Além da biodiversidade única presente nos campos e florestas da serra, o abastecimento de água de todo o estado pode sofrer alterações com o mau uso do solo, afirma Miriam Prochnow. “Nesta região está o aquífero Guarani, onde a água infiltra e é distribuída para diversos rios e nascentes. Por isso qualquer ocupação indevida vai impactar diretamente a quantidade e qualidade da água”, alerta.
O ecologista Lauro Bacca lembra que a região tem potencial turístico ainda não notado pelos ocupantes de cargos políticos catarinenses. “Diferente de nós, os japoneses, norte-americanos e europeus já entenderam a joia preciosa que são os parques nacionais”, cita ao lembrar do Parque Nacional de São Joaquim em Urubici, que ano passado completou 60 anos.
“Turistas viajam milhares de quilômetros para conhecer esses parques por causa das suas belezas naturais, para ver uma espécie de animal ou uma vegetação que só tem naquela região. Isso é produção de natureza: é possível produzir muito lucro a partir da natureza conservada, ao invés de destrui-la”, conclui Bacca.
O documento de análise inicial das quatro organizações foi enviado aos poderes executivo e legislativo de Urubici, e pede participação ativa da sociedade para discutir a proposta de lei, como a realização de audiências públicas.
Texto: Jéssica Amaral – DePropósito Comunicação de Causas