Opinião: Novo marco do saneamento visa a universalização do sistema até 2033

, Carine Bergmann 4 de agosto de 2020
 Opinião: Novo marco do saneamento visa a universalização do sistema até 2033

Tiago Jacques[1]

O contexto do saneamento

Inicialmente registro que é uma grande honra tecer algumas considerações sobre o novo marco do saneamento para o Movimento Nacional ODS Santa Catarina, não apenas pela minha simpatia às causas defendidas pelo Movimento, mas também por entender que o novo marco do saneamento, se bem endereçado, tem relação e interação com os objetivos de desenvolvimento sustentável, entre os quais destaco o direito à água potável e saneamento, saúde e bem-estar, crescimento econômico, inovação, infraestrutura e tudo isso tendo como vetor axiológico a sustentabilidade.

Com certeza a pauta do saneamento básico é o assunto do ano em infraestrutura e possui significativos reflexos na saúde e na economia. O tema veio à tona por conta da aprovação do novo marco legal do saneamento no Senado Federal no dia 24/06/2020 e sancionado pelo Governo Federal em 15/07/2020.

É inegável o mérito do novo marco do saneamento, assim como a sua relevância para o Brasil. Ele é fruto de um consenso político de interesses muito antagônicos que precisaram, de certa forma, serem aglutinados. É provável que não seja o melhor texto possível, mas seus avanços são consideráveis. Há ainda algumas arestas a serem resolvidas, como os decretos regulamentadores, vetos presidenciais e judicialização.

É comum que o saneamento básico e, por conseguinte, os diálogos ao entorno do novo marco fiquem sujeitos ao abastecimento de água potável e  esgotamento sanitário, mas o marco também regula outras duas situações: a limpeza urbana e manejos de resíduos sólidos, assim como a drenagem e manejo de águas pluviais urbanas.

Os números do saneamento no Brasil chamam a atenção até dos próprios brasileiros, que muitas das vezes, desconhecem a sua realidade. Não se pode perder de vista que o Brasil é um país com as suas características próprias e tem um tecido social marcado por profunda desigualdade, razão pela qual há quem sustente e – com certa propriedade – que o saneamento básico – ou melhor, a ausência de saneamento – é a linha que divide o Brasil da classe média do Brasil da idade média.

Talvez, pareça um pouco pesado e radical, é fato! Mas esta é a realidade especialmente se considerarmos que: no Brasil cerca de 100 milhões de pessoas, ou seja, quase a metade da população não tem acesso ao esgoto. Daqueles que possuem coleta de esgoto, apenas menos da metade, 46,3%, é tratado, o resto retorna para a natureza no mesmo estado em que foi coletado.

35 milhões de brasileiros, que representa praticamente a população do Canadá, não possuem acesso à água tratada.

O índice médio de perda de água pronta para o consumo é de aproximadamente 40% e o prejuízo estimado é de R$ 10 bilhões/ano. É difícil de imaginar a viabilidade econômica de qualquer empreendimento/indústria que perde quase metade do que produz. Apenas a título de comparação, a Austrália perde 7%, Estados Unidos 13%, Nigéria e Quênia 45%.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que no Brasil há cerca de 15.000 mortes por ano em decorrência de doenças de veiculação hídrica, sendo 6000 de crianças recém-nascidas.

A OMS calcula que 350 mil brasileiros são internados nos hospitais da rede pública e privada com doenças relacionadas à precariedade do saneamento básico.

Os dados acima mostram uma dicotomia nacional, pois ao mesmo tempo em que o Brasil é a 9ª economia mundial, no saneamento básico o país está ranqueado no mundo na posição de 117º.

Mas, então, qual é o problema do saneamento no Brasil? Aqui é preciso tomar cuidado para não cair no mau vezo de responder uma questão complexa com uma resposta simplista. Não obstante, regra geral, as mazelas do saneamento básico no Brasil estão relacionadas a dois fatores, quais sejam: ausência de investimentos para a obtenção da universalização dos serviços de água e de esgoto e pouca eficiência do setor.

Forma atual de prestação do serviço: Companhias Estaduais X contratos de programa

Grande parte do mercado de água e esgoto no Brasil é operado por Companhias Estaduais por meio de contratos de programa, que consiste na possibilidade de um ente estatal (município) contratar com outro (Estado) por intermédio de Companhias Estaduais, a prestação do serviço de saneamento. Isso ocorre de forma não competitiva, mesmo quando ela é viável e desejável.

Este arranjo contratual entre municípios e estados se perfectibiliza por meio de contratos de programa. Aliás, este é um dos temas mais discutidos (e controvertidos) do novo marco do saneamento, que consiste na imposição da “extinção” dos contratos de programa.

Tais contratos podem ser definidos como uma espécie de contrato de concessão de serviço público, porém, sem ser precedido de processo licitatório, em dissonância com o mandamento da Constituição Federal, especialmente do artigo 37, inciso XXI[3] e do artigo 175[4]. Enfim, não possuem a condição legal e constitucional determinante para serem denominados de contratos de concessão.

Por conta disso, há quem sustente a ilegalidade e a inconstitucionalidade destes contratos, conforme consignado no veto aposto pelo Presidente da República ao art. 16 do novo marco do saneamento, nos seguintes termos: “(…) Ademais, a proposta, além de limitar a livre iniciativa e a livre concorrência, está em descompasso com os objetivos do novo marco legal do saneamento básico que orienta a celebração de contratos de concessão, mediante prévia licitação, estimulando a competitividade da prestação desses serviços com eficiência e eficácia, o que por sua vez contribui para melhores resultados”.

O texto aprovado pelo Senado Federal previa a possibilidade de prorrogação por uma única vez dos atuais contratos de programa, contudo, desde que as Companhias Estaduais demonstrassem musculatura financeira para fazerem frente aos investimentos necessários para a universalização do sistema até o ano de 2033, conforme definido no Plano Nacional de Saneamento Básico (PLANSAB).

Estes contratos de programa em sua grande maioria operam (e operaram) com regras pouco claras de investimento, sem a existência de compromissos críveis de qualidade e investimento e acabaram por colocar as Companhias Estaduais em uma posição de vantagem no mercado, muitas das vezes justificado pelo racional pouco transparente dos subsídios cruzados. Nada contra os subsídios cruzados, mas é preciso governança e transparência.

Por outro lado, esta situação de vantagem fez com que várias Companhias Estaduais se tornassem pouco eficientes, permeada de valores arcaicos arraigados da história nacional, como o patrimonialismo, personalismo e sujeitas ao controle político e aos seus fisiologismos. Esta é a realidade do setor, porém, é preciso que se reconheça que há Companhias eficientes, a exemplo da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), assim como é preciso reconhecer que muitas Companhias Estaduais possuem excelentes quadros técnicos.

Em razão da penúria financeira enfrentada por muitas Companhias Estaduais elas estão longe de terem envergadura econômica e/ou capacidade de atração de recursos financeiros para fazerem frente aos investimentos necessários para a universalização do sistema, que estão estimados em R$ 700 bilhões.

Com sorte, mantido o ritmo de investimento atual, as projeções apontam que a universalização poderia ocorrer entre 2050 e 2060. Dados do setor mostram que entre 2014 e 2017 o reajuste nas tarifas de água e esgoto praticados pelas Companhias Estaduais foi de 30,7%, ao passo que os investimentos caíram cerca de 3%. No entanto, parte significativa do aumento tarifário foi para o custeio da folha de pagamento, que consome cerca de 51% do total das receitas tarifárias percebidas pelas Companhias Estaduais. Este mesmo dado nas empresas privadas é de aproximadamente 22%.

Atualmente, apenas 6% do mercado de água e esgoto está com a iniciativa privada, por meio de contratos de concessão, precedidos, evidentemente, de competição, por conta do processo licitatório, que é a regra constitucional.

Os investimentos realizados pelas empresas privadas representam 20% da integralidade do que é aplicado por todo o setor de saneamento. Uma simples regra de três mostra que as empresas privadas investem em média quase 4 vezes mais que as Companhias Estaduais. 

Desta forma, os contratos de programa e as companhias estaduais eram cientes de que tinham um encontro marcado com a realidade social – necessidade de universalizar a prestação do serviço –, seja pela sua fragilidade jurídica, seja pela carência de capital para a realização dos investimentos.

Criticar este modelo de contratos de programa e envidar esforços para o fim de tais instrumentos é medida benéfica para o desenvolvimento do setor e também óbvia no contexto atual. Mas não se pode esquecer que foi com este modelo que muito se avançou, especialmente na distribuição de água.

Não havia, décadas atrás, capital privado com apetite para investir em saneamento como existe hoje. Entretanto, como quase tudo na vida, este modelo dá sinais claros de ter esgotado o seu ciclo e o novo marco do saneamento abre o mercado para investimentos também privados no setor. O ambiente macroeconômico nacional e internacional, com taxas de juros próximas de zero, quando não negativas e o novo marco regulatório criaram o cenário perfeito para o “match” com o investidor, que busca segurança jurídica e regulatória para aportar recursos de longo prazo.

Quais as soluções trazidas pelo novo marco do saneamento?

Abertura do mercado com o objetivo de universalização do sistema, metas de redução de perdas e qualidade

O grande vetor normativo advindo com o novo marco do saneamento é a universalização do sistema[5], metas de redução de perdas, metas quantitativas de não intermitência e melhoria dos processos de tratamento. Ou seja, fazer com que todo cidadão brasileiro tenha acesso à água e ao esgoto tratado até o ano de 2033[6], com qualidade, eficiência e tarifas módicas. Este é o comando contido no plexo de normas que estão descritos no texto do marco do saneamento.

Portanto, como o diagnóstico setorial mostra com clareza as dificuldades financeiras das companhias estaduais para fazerem investimentos e também para tomarem financiamentos, assim como – regra geral – são pouco eficientes na alocação dos investimentos, a saída encontrada é abrir o mercado de saneamento para players privados, sem excluir os públicos que se mostrem eficientes.

Historicamente o setor de saneamento na infraestrutura nacional (rodovias, aeroportos, portos, energia, telecomunicações) é o que mais demanda por investimentos, porém é onde menos se investiu na série histórica.

Enfim, com a aprovação do novo marco do saneamento a regra passa a ser a da competição pelo mercado. As empresas hão de demonstrarem envergadura econômica para realizarem os investimentos tão necessários no setor e concorrerão em regime de igualdade, por meio de processos de concorrência (licitação), como já previsto na Constituição Federal, porém até então escamoteado pelos contratos de programa.

Para que não fique nenhuma dúvida: pelo novo marco do saneamento tornou-se ilegal a delegação dos serviços de saneamento não apenas por contrato de programa, mas por qualquer outro meio, como por exemplo, convênio, termo de parceria ou qualquer outro instrumento de natureza precária. A regra do setor retoma a ser aquela ditada pelo constituinte originário em 1988, no sentido de que toda e qualquer delegação de serviço público necessariamente há de ser precedida de processo licitatório, onde todas as empresas, neste caso privadas ou companhias estaduais – sociedades de economia mista – possam participar em regime de competição e isonomia. Simples assim!

Pode-se afirmar que o novo marco do saneamento tem os seus olhos voltados mais para o serviço e para o cidadão que o recebe, e menos para a empresa que o entrega. A população mais vulnerável é a que paga a conta mais alta pela falta de saneamento, às vezes esta conta é a própria vida, ou seja, uma conta que não tem preço. É contrassenso[7] que áreas tidas por “irregulares”, como as favelas, que possuem energia elétrica, Internet, sinal 4G, TV a cabo, transporte público, não contem com saneamento básico.

O legislador preocupado com a população de baixa renda, que tem todos os serviços acima listados, mas carece de saneamento pelo fato de estarem em áreas tidas por irregulares, dispôs no novo marco do saneamento de maneira expressa o direito ao saneamento, independentemente de onde o cidadão tenha fixado a sua residência, ainda que em local tido por clandestino ou irregular, o que a norma denominou de “núcleo urbano informal consolidado”.

Neste sentido, o novo marco regulatório do saneamento não é a dialética entre privatizar ou não privatizar, mas sim entre ser ou não ser eficiente. Pouco importa se o serviço será prestado por empresas públicas ou privadas, mas sim que efetivamente seja prestado, de forma eficiente e com tarifas módicas.

Novas competências da ANA – Diretrizes nacionais 

Outra mudança significativa trazida pelo novo marco do saneamento é a atribuição de competência para a Agência Nacional de Águas (ANA) para “instituir normas de referência para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico”, que serão diretrizes regulatórias – normas de referência nacional – com o fim de tentar padronizar a regulação e os entendimentos dos contratos de saneamento, como por exemplo, padronização dos contratos, metodologia de cálculo e apuração de equilíbrio econômico-financeiro, metas, relação com os usuários e governança regulatória.

Parte significativa das agências reguladoras do mundo está no Brasil, que só em saneamento possui quase 50 agências. Há, por conta disso, muita assimetria de informação e entendimento, que gera a fragmentação da regulação setorial. Essas divergências afetam os contratos, causam incertezas e riscos regulatórios, provocam a judicialização e acabam por afugentar investidores, razão pela qual se entende por acertada a competência atribuída à ANA.

As normas de referência oriundas da ANA não serão cogentes e vinculantes aos municípios, no entanto, há um forte mecanismo de incentivo para a sua adoção, que consiste na vedação de “acesso aos recursos públicos federais ou a contratação de financiamentos com recursos da União ou com recursos geridos ou operados por órgãos ou entidades da administração pública federal” aos Municípios que não a adotarem. Em resumo: quem não adotar as diretrizes regulatórias da ANA não terá acesso às principais formas de financiamento público. A adesão é voluntária e o incentivo é quase uma imposição.

Prestação regionalizada dos serviços

Cabe destacar, também, a possibilidade de prestação regionalizada dos serviços, especialmente para aqueles municípios que não se mostrem rentáveis ou porque de alguma forma compartilham infraestrutura e possuem ganho de escala com outros municípios, o que pode trazer a viabilidade técnica e econômico-financeira, com o fim precípuo de possibilitar que municípios com menor porte tenham acesso aos serviços de saneamento de forma universalizada, inclusive por meio de subsídios cruzados. 

Ainda pairam muitas dúvidas e questionamentos acerca de como vai se operar a prestação regionalizada, seja ela por meio de regiões metropolitanas, unidade regional de saneamento básico, instituída pelos Estados ou dos blocos de referência, estabelecidos subsidiariamente pela União. Este tema ainda impõe alguns desafios, especialmente de governança.

Possibilidade de privatização das Companhias Estaduais de Saneamento Básico

Outra situação trazida pelo marco é a possibilidade de privatização das Companhias Estaduais de Saneamento Básico, pois o §6º do art. 13 da Lei nº 11.107/05 foi revogado. Este dispositivo determinava que a alienação do controle acionário da Companhia implicaria na extinção dos contratos de programa. Assim, com a revogação passou a ser possível e muito mais atrativa a privatização das empresas estatais de saneamento.

A crítica aqui, reside no fato de que o texto originalmente firmado em consenso no Congresso continha o art. 16, que dava prazo para a regularização dos contratos de programa e permitia a sua prorrogação. Contudo, o veto a este dispositivo trouxe insegurança jurídica e deve estar na pauta de muitos debates e posições inflamadas que estão por vir.

Considerações finais

É chegada a hora de se despedir da oposição binária entre o público e o privado, que acabam por criar grandes abstrações, viram crenças e colocam pessoas e organizações em trincheiras diferentes, onde a bipolaridade se torna um fim em si mesma e se afasta do meio, que é entregar serviço de saneamento básico para toda a população. Nunca é demais repetir: pouco importa quem vai prestar o serviço de saneamento, se ente público ou privado, o que realmente interessa é que ele seja endereçado para todos e com tarifas módicas. Serviço caro é aquele que não é prestado.


[1] Tiago Jacques, Advogado, Certified PPP Professional (CP³P-F) pelo PPIAF/World Bank/APMG), bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC, membro da Comissão Nacional de Saneamento e Recursos Hídricos da OAB, membro fundador da Comissão de Parcerias Publico-Privadas da OAB/SC, sócio da Cavallazzi, Andrey, Restanho & Araújo Advogados

[2] Os números da população são em milhões

[3]Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: 

(…)

XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações

[4] Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.

[5] Garantir até o ano de 2033 que 99% da população tenha acesso à água tratada e 90% com coleta e tratamento de esgoto.

[6] Sem esquecer é claro das normas aplicadas à gestão de resíduos sólidos e o manejo de águas pluviais.

[7] Além da cultura marcada pelo patrimonialismo e personalismo, a meritocracia não adentrou nos valores nacionais, de modo que os mecanismos de distinção social estão fortemente atrelados aos padrões de consumo, razão que pode justificar a entrega de algumas infraestruturas com mais apelo ao consumo e sonegar outras como o saneamento e a educação.