Na semana de Solidariedade com os povos em Luta contra a Discriminação e o Racismo entrevistamos Solange Adão, arte educadora e vice-presidente do MAN – Movimento de Artistas Negros. Leia abaixo a íntegra da entrevista.
Nós Podemos – Solange, conte um pouco sobre a sua história e sua luta contra a discriminação e o racismo.
Solange Adão – Meu nome é Solange Adão, tenho 54 anos e sou mãe de um filho com 23. Eu sempre falo que eu sou uma negra sem movimento. Eu sou um movimento. Porque nunca se esperou, dentro da minha família, do meu grupo de amizades, que a minha comunidade fizesse, ou que o meu estado fizesse; a gente sempre fez. Nós nunca esperamos. Eu tinha um grupo de música, um grupo de teatro, de moda. Eu tinha porque eu tinha que fazer. Não esperávamos e não espero até hoje. Antes da lei 10.639 de 2003, que trata da obrigatoriedade da aplicação na história do ensino e da cultura do negro no Brasil e na África, eu fiz com os meus alunos da Escola Básica Celso Ramos um livro, chamado “Fazendo e Aprendendo”. Cada criança tinha uma página e contava a sua visão sobre a discriminação dentro da Comunidade do Maciço da Cruz. E, apoiado pelo MEC, foi editado pelo governo do estado. A gente está sempre em movimento. Essas ONGs têm um movimento disso e daquilo, têm vários. Quando que esses movimentos vão se unir para desenvolver um projeto efetivamente e que eu possa ver resultado lá na frente? Sozinho é muito difícil. Hoje eu sou vice-presidente do MAN – Movimento de Artistas Negros, com sede em São José. Tem vários negros envolvidos. No ano passado, nós montamos um espetáculo, “Simplesmente João”, porque nós colocamos na cabeça que tínhamos que mostrar para o povo de São José, começamos por ali, com as crianças de São José, quem era João da Cruz e Souza, que não era simplesmente um poeta, ele era mais do que isso, ele era um homem e negro. É mais do que um poeta, que sua obra. Então, nós contamos a visão, fragmentamos a história do Cruz e Souza com outros Cruz e Souza, o Edsoul foi Cruz e Souza, o Adriano foi Cruz e Souza, a Érica foi Cruz e Souza, teve vários, porque ele é um homem e ele é negro. E a gente tem que pegar por aí. Por exemplo, eu já fui presidente da AMAB – Mulheres Negras Antonieta de Barros. Porque que eu não fiquei lá? Porque aquilo não me dimensionou, não me proporcionou outras coisas além da linha da Mauro Ramos, eu queria atravessar aquela linha, aquele mar já estava me sufocando. Eu ia pra lá todas as quartas-feiras, a gente discutia, fazia isso, fazia aquilo, mas quando que a minha comunidade vai descer dos pontos do maciço, negros ou não, porque pra mim não interessa, eu gosto de lutar pelas pessoas, pelo segmento da vida, e isso não acontecia. Até que nós achamos o MAN. Mas esse meu desconforto se dá por causa da teoria. Tem muita teoria e não tem prática. Não tem. As pessoas não criam redes. As pessoas me criticam por eu ser muito assistencialista, porque eu levo sexta básica, enxoval…Levo! É isso que o meu povo está precisando agora, é o que eu vou fazer. Levo, nós fizemos uma campanha aqui na escola que as crianças trazem alimento não perecível, etc. Onde eu vou, eu levo. Vai o povo da escola aqui, para subir o morro, nós distribuímos 16 sextas básicas, o Natal ficou legal, as crianças passaram alimentadas naquele dia, é aquilo que eu posso fazer, é aquilo que vou fazer e vou continuar fazendo. Roupa, eu sempre digo ô Rosa, ô Maria, ô Gabi! Vamos arrumar o guarda-roupa? Por favor. A gente coloca num saco, distribui e levamos até elas, convido pra ir junto comigo porque a gente faz isso, veste um, veste outro, fala, conversa, eles têm que abrir esse leque de oportunidades. A palavra da minha casa é O-POR-TU-NI-DA-DE. Oportuniza, porque, ah porque é negro. Mas todos o negros da história já provaram que são bons. Nós somos rei no futebol, rei na literatura, o que é? O que é que está faltando? Que eixo é esse que nunca encaixa. Nós já provamos! Então não estou a fim de provar pra mais ninguém, nem para brancos, nem para negros, pra ninguém! Eu sou boa! Eu sou a melhor do meu bairro, da minha escola, da minha casa, do meu serviço, da minha profissão, da minha…eu sou! Aí eu faço a diferença, porque eu não vou esperar por mais ninguém. Se eu tiver que fazer, eu arregaço as mangas e vou à luta, não tem história. Por isso que eu me incomodo muitos com essas ONGs, com essas discussões…Eu participo dessas discussões, lá com a Gerusa Romão, da educação lá no NEAB, eu estou sempre numa discussão na universidade, eu discuto aqui, eu discuto muito em casa, as minhas irmãs têm essas falas muito construídas na minha casa, mas me incomoda é a fragmentação da ajuda.
Nós Podemos SC – Por que você acha que essa fragmentação acontece?
Solange – Penso que isso acontece porque de certa forma pensam diferente. Cada um vai para uma linha. Eu penso que a linha é da educação. Da aglomeração. De juntar, de conversar. Tem movimento que acha que a linha é editar uma cartilha, um bom jornal, para que? Quem vai ler? Nós tínhamos os sábados que nós íamos pro Maciço do Morro da Cruz para alfabetizar. Falar de gravidez, de como botar camisinha. A gente colocou uma semente na cabeça de muitas. Muitas engravidaram cedo? Muitas. O corpo pede como diziam elas! Mas a gente fez a diferença quando elas pensam no nome, é isso. Falta oportunizar uma secretaria onde não há divergência entre um e outro, porque tem o CEPA, tem os movimentos, acho que é sentar e ter uma única ação. Como foi quando os negros do Haiti vieram pra cá. Foi uma ação muito bonita, aqui na minha escola eu recolhi muita roupa, porque foi isso que me pediram. Eu levei uns quatro carros lá para o CEPA, a gente vestiu muita gente, porque era o que eles precisavam naquele momento. Eles precisam do que agora, de moradia? Vamos ajudar. Porque não é só colocar o negro no espaço da universidade. Ele vai precisar de Xerox, vai precisar de livros, vai precisar de vale-transporte, de alimentação. A Lei das Cotas 12.711 está aí para isso está aí para isso. Os negros estão sendo contemplados, é uma discussão histórica, é uma guerra histórica, é um direito meu. Então me acorrentaram por 500 anos, deixaram o outro grupo solto, aí é ruim né? Como é que eu vou correr com toda a minha sabedoria, eu amarrada e tu solta? Eu luto, eu até fico ferida. Mas morrer é muito difícil. Mas a gente nunca chega. Então a lei veio para contemplar isso, para reparar essa diferença histórica. É um direito. Assim como tem os direitos das mulheres, dos cegos, das pessoas com deficiência, então porque não dos alunos negros periféricos, porque a lei não contempla os alunos negros que não são de escolas públicas. Os meus sobrinhos não foram contemplados porque eles vieram de uma escola particular. O meu filho entrou pela lei porque é um direito. Eu nunca quis e nunca colocaria meu filho em uma escola particular, porque eu sempre acreditei no meu trabalho da escola pública. Ele sabia na comunidade lá em cima que lá ele podia estar em berço de ouro, mas os irmãos lá em cima não, então ele tinha que dividir sim. E divide até hoje. E isso se faz na base familiar. Mas a gente cansa de fazer e nada acontecer. Eu acho que tem que ir pra luta mesmo, para a pintura, para a escavação, sair da teoria e ir para a prática. Nós somos um povo da prática. Nós não somos um povo da teoria. E eu não estou falando nem do povo negro. É do povo brasileiro. E tem muita teoria boa sem ser lida. E aí se comentem erros gravíssimos, na sua prática diária. O professor no espaço da escola com as crianças, os empregadores com os empregados no espaço do serviço…e assim vai. Ver Edsoul hoje em um canal de televisão com grande audiência, ele está representando muito bem a minha gente, porque ele faz muito bonito, ele já
provou que é bom. Mas não precisava ser só ele. Só tem um. E ele não é o único bom. Tem vários. Não sei qual é o eixo que aperta que eles não oportunizam. E tem que se oportunizar.
Nós Podemos SC – Você trabalha há 34 anos como arte educadora. De que forma você acha que seu trabalho contribui para diminuir o racismo?
Solange – Eles percebem, os alunos negros e não negros, que eu sou capaz de fazer a diferença na escola. Eu tenho a mesma capacidade que o professor, ou diretor não negro. Eu estou numa escola extremamente branca. Aqui não é um bairro negro. A única comunidade negra, que é uma comunidade dentro de outra comunidade de arianos dentro da Panaia, que é um grupo negro. Que é um grupo pobre. Mas eu vejo a autoestima sendo trabalhada e eu sinto uma mudança radical em todos os sentidos com a minha presença no bairro que não é o meu, que não tem o meu perfil, que não tem a minha cara e tem tudo isso, porque a gente sabe que a gente pode pegar uma enxada e cavar e pode por um salto, entendeu? Pode o extremo. Eu faço essa ponte do extremo. Sumiu agora um celular, e eu tinha que estar lá. Tem um monte ali, diretor geral, mas eu tinha que estar lá porque a minha fala faz a diferença. Eu percebo que faz a diferença na hora de colocar para a mãe. O papo é reto, como diz o MV Bill. Não tem aquela história pedagógica, mas sem sabor. Esse saber tem que ter sabor pra mim. O sabor do saber pra mim é muito intenso. Tem que conviver comigo para saber como esse sabor da vida, da igualdade da educação tem sabor. E o sabor é de feijoada, de mocotó, de dobradinha, comida de pegada de negão mesmo. Porque quando a gente vai para a briga, quando a gente vai para o abraço, a gente não falseia, a gente abraça de verdade, sente o cheiro na nuca. E eu enxergo cada um no seu quadrado, porque os quadrados são diferentes. E eu respeito. Porque tem hora que a gente enlouquece, mas no geral eu respeito os quadrados. E a criança sabe. Eles percebem.
Nós Podemos SC – Você critica os movimentos fragmentados, mas também se enxerga como um movimento de uma pessoa só. O que na sua opinião falta para os movimentos serem mais efetivos e gerarem resultados com as suas lutas?
Solange – Eu não sei. Porque eu sento em casa com o povo, esses dias na minha casa, na época do meu aniversário, sentou eu e Gerusa Romão, que é minha mestra, Fabio Garcia que é outro do movimento negro, a gente discutiu um monte de coisa que a gente queria fazer, umas histórias, eu com o teatro, ele com a história, a Gerusa Romão com a pedagogia, a gente delira muito. Eu acho que a gente quer tanto, e a gente sabe tanto, que a gente não consegue juntar, não sei. Cada um faz muito bem o seu caminho, mas falta juntar isso tudo.
E todo dia é dia de negro, de índio, de branco e de gente. De falar bem. Vamos falar de ator, vamos falar de mulher, vamos falar de Tarsila do Amaral. Vamos falar de Maier Filho. Traz a pintura, traz a figura do Maier filho, a família do Maier filho, onde ele trabalhava. Isso aqui dá um planejamento enorme. Não é só a pintura, não é fragmentar as ideias e a história. Junta-se tudo e vai se construindo. Viu um filme que fala do negro? Junta e volta falar daquilo. Não que aquilo seja pontuado só naquele momento, só no 20 de novembro. Mas toda vez que for falar da história, ou de uma questão matemática, se falasse do negro. Por exemplo, se fala em formas geométricas traz a história da tribo Ndebele, foi o que fizemos aqui na escola. Deixamos tudo colorido e com as formas e cores Ndebele. A escola está toda afro, na pintura e na forma. Se tu falas tu vai reviver isso. Mas que não seja uma coisa obrigatória, no dia 20 de novembro, no dia 13 de maio, mandar as crianças pintar um escravo acorrentado, o negro pintado de marrom e a corrente preta. E os professores alegam que não estão preparados. Estamos preparados para falar de China, da Alemanha, das batalhas, dos bizantinos? Ninguém está preparado. A gente vai se preparando lendo, pesquisando e discutindo. E não queremos tudo igual. Eu quero tudo diferente. Eu sou diferente, me respeitem! Cada um é cada um em seu quadrado. Mas com as oportunidades iguais. Ninguém é igual a ninguém, as oportunidades tem que ser iguais. Porque o sol é para todos, mas a sombra é para alguns.